Artigo de Opinião


A espiritualidade enquanto um fenômeno de resistência

Quando usamos a palavra espiritualidade associamos a um estilo de vida desligado do mundo. É como se o padrão de vida ideal fosse uma apatia a tudo o que ocorre ao nosso redor. Quantas vezes não ouvimos: isso é coisa do mundo! E, se assim o é, então devemos evitar.

Dentro desta mesma perspectiva, associamos a expressão a uma experiência religiosa. E quando isto ocorre, muitas vezes se alimenta sentimentos de intolerância frente a vivência de fé do outro.

Um conceito dado sobre espiritualidade é a vivência segundo o espírito, considera-se a qualidade do que é espiritual. Neste sentido, somos provocados a compreender esta vivência segundo o espírito como uma dimensão exclusivamente humana. Conforme a ontologia dimensional de Viktor Frankl, o ser humano vem a ser compreendido mediante a interação entre corpo, psiquê e espírito. Esta terceira dimensão é cunhada como noológica, justamente para não ser confundida com experiências específicas de vivência religiosa.

É por meio desta terceira dimensão que passamos a melhor compreender, do ponto de vista antropológico, a dimensão da resistência. O ser humano é capaz de transcender qualquer situação que aparentemente não tem saída. E aqui podem ser observadas situações que afligem tanto a dimensão somática quanto a psíquica. Frankl traz a compreensão de que a dimensão noológica, presente no ser humano, jamais adoece. Então, apesar do sofrimento que nos circunda, das imperfeições que nos rodeiam e dos limites que nos cercam podemos sim dizer: é possível viver apesar do sofrimento.

Aqui não se trata de pieguismo, mas de energia vital que alimenta as pessoas a superarem tantas situações aparentemente invencíveis. Viver segundo o espírito é abrir possibilidades de resistência, tanto em âmbito pessoal, como social. Aqui podemos reportar a expressão “há uma luz no fim do túnel”.

No espírito da quaresma, como podemos trazer esta compreensão, à luz da fé cristã? Na segunda leitura, da liturgia deste quinto domingo da Quaresma, o apóstolo Paulo (Rm 8, 8-11) nos lembra que não vivemos segundo a carne, mas segundo o Espírito, sendo que este habita em nós. Neste sentido, a dimensão espiritual não é para os cristãos apenas uma dimensão antropológica, mas é também uma dimensão teologal. E podemos contemplar tal dimensão em nós, cada vez que nos fortalecemos para superar algo que aparentemente seria impossível. É aqui que deve habitar em nós a necessidade de conversão, ou seja, de acreditar que a cada instante a nós é oferecida a possibilidade de um recomeço, apesar do sofrimento.

A superação de uma dificuldade pode ser vista, à luz da fé cristã, como algo que está em conexão com a experiência da transfiguração, vivenciada no monte Tabor. Apesar do sofrimento, é a força da experiência teofânica vivenciada por Moisés e Elias quem alimenta a nossa caminhada no contexto atual. E tal conexão está imbuída da força do ressuscitado.

Diante disso, podemos compreender de onde vem tanta força para a nossa resistência: “[...] o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos mora em vós, então aquele que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos vivificará também vossos corpos mortais por meio do seu Espírito que mora em vós.” (Rm 8,11).

É com este sentimento que o cristianismo na sua tradição compreende a força da interação entre fé e vida. É com este sentimento, que se alimenta a necessária possibilidade de conversão que nos acompanha. A pessoa humana somente aprecia a força da novidade, quando está aberta para o novo que se aproxima a cada instante: é possível superar apesar de tudo.

No contexto da Campanha da Fraternidade, trazemos a triste realidade da fome, mas iluminados pela força do Evangelho, temos a ousadia de contemplar tantos sinais de vida presentes em nosso contexto. Inclusive, somos desafiados a perceber que as sementes do evangelho, que se unem no combate a fome, estão para além do universo cristão. Como é importante reconhecer que a ajuda as pessoas necessitadas é semente de Boa Nova e que merece ser acolhida e abraçada. Fazer o bem sem olhar a quem é puro Evangelho.

Entretanto, é obra do Espírito não somente dar o pão a quem tem fome, mas denunciar tudo o que contribui para o fortalecimento deste mal, como também é necessário o engajamento para fortalecer as forças de incidência política para que todas as pessoas possam ter direito a terra, teto e trabalho, conforme tem afirmado o Papa Francisco. O bonito desta compreensão é que aonde muitos veem interesse político, a fé cristã nos proporciona vivências segundo o Espírito.

Como é importante algumas paradas no decorrer de nossa caminhada, a fim de que se possa fazer a experiência do Tabor; afinal, não se pode perder o foco de onde vem a nossa força enquanto cristãos. É pela fé que lutamos para que todas as pessoas tenham vida em abundância, sem esquecer de que para que a vida ocorra em plenitude precisamos fortalecer o zelo por nossa Casa Comum.

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